Cinzas do Norte
Cinzas do Norte foi o terceiro romance de Milton Hatoum a ganhar o Jabuti, conceituado prêmio brasileiro de literatura, publicado em (2005). Seus dois romances anteriores, Relatos De Um Certo Oriente e Dois Irmãos alcançaram o mesmo prestígio, dando ao amazonense visibilidade e, sobretudo, respeito junto à crítica nacional. Características iniciaisMilton usa como pano de fundo de suas obras o cotidiano de nossas cidades. Seja em Manaus, Rio de Janeiro ou Londres, as paixões, os conflitos e a angústia humana. Cinzas do Norte é uma viagem aos anos iniciais da ditadura militar no Brasil, implantação da Zona Franca de Manaus e criação do bairro da Cidade Nova, retratados pela personagem Mundo e sua arte, e ainda, as relações conflitantes entre cultura e progresso, regionalismo e provençalismo, estudantes e militares. A influência de Gustave Flaubert na obra de Hatoum é marcante. Mundo, personagem principal, é uma alegoria do exílio. Contexto históricoDuas décadas de grandes transformações, assim podemos definir os anos entre 1960 a 1980 em todo o mundo. A corrida espacial, as revoluções na China e em Cuba, o avanço do socialismo, da medicina e da ciência em todos os campos conturbaram o cenário ideológico mundial, incendiando a mente de jovens revolucionários. Eram os deuses astronautas? Perguntavam-se alguns, enquanto através de um pequeno tubo de imagens, perplexos, assistiam ao homo sapiens pisar na superfície da Lua. Veio o anticoncepcional, o computador, o LSD; um mundo mais racional? Embarcava-se no Yellow Submarine, para Woodstock ou para o exílio num sol de quase dezembro. Por que não? Cinzas do Norte passa-se na Manaus turbulenta de Arthur Reis, nas décadas de agitação política do país, relatando os primeiros anos da ditadura no Brasil e, como já foi dito, a criação do bairro da Cidade Nova. Nesta época, a capital do Amazonas retomava o crescimento interrompido pela queda do preço da borracha. As indústrias viriam a despontar como uma nova perspectiva de progresso, precedidas pelo comércio de produtos como o cumaru, a piaçava e, principalmente, a juta, depois pela zona de livre comércio. O crescimento desordenado inchava a cidade, tomada pelos caboclos abandonados pelo poder público e por aventureiros vindos de todas as partes do país, dando origem às primeiras invasões, como a Cidade Flutuante, um amontoado de barracos construídos à margem do Rio Negro, e que se estendia do Bairro da Glória até o começo da Compensa. A implantação de uma área de livre comércio, a Zona Franca de Manaus, foi mais uma preocupação militar no sentido de resguardar a região, até então esquecida, da cobiça estrangeira do que realmente integrá-la ao resto do país. A infância e parte da juventude do autor se deram nesse contexto que marcou influentemente a composição do romance, permeando-o. Uma narrativa quase fidelíssima de um tempo não muito distante. Hatoum trabalhou como engenheiro no conjunto habitacional de Eldorado, atual Cidade Nova, porém abandonou o emprego por discordar da maneira como o projeto foi realizado. A agressão ao meio ambiente, denunciada pela personagem Mundo na obra, foi, segundo o próprio Milton, o motivo. O autor também estudou no Ginásio Amazonense D. Pedro II,. As coincidências, ou semelhanças entre autor e obra também estão presentes nas memórias de Alícia, na amizade com a família do empresário J G. de Araújo e as idas a Vila Amazônia. O Morro da Catita, bairro de Vila da Prata, foi onde Hatoum passou parte da infância. As lembranças desse lugar são transcritas pela personagem Ranulfo com exatidão jornalística e histórica. Cinzas do Norte é um romance realístico. Personagens
Aqui reside uma outra chave do romance. Ranulfo é o reflexo, a imagem oposta a de Trajano, ambos formam um duplo: um é aquilo que o outro nunca será. Enquanto o último é escravo da profissão, do materialismo, o primeiro é um doidivanas, apegado somente ao que é leviano. Este tem muitas mulheres, aquele outro, apesar de casado, nenhuma. Jano é pragmático, Ran é desleixado.
Segundo a interpretação de Hilhelm para o ideograma I, do I-Shing, a figura do camaleão (lagarto), conota mutabilidade e fácil mobilidade. A ela foi agregado o simbolismo do estandarte de um comandante ou senhor feudal, passando a representar poder e transferência de poder entre sábio e discípulo, superior/subordinado. Mundo ao quebrar o vínculo de sucessão rompe com a ordem, com o equilíbrio. Toda a problemática do regime encontra-se diluída na relação tumultuada entre pai e filho. O punho de ferro de Trajano, suas ligações com o alto escalão militar, a Vila.
O mito de PrometeuEm Cinzas do Norte encontramos um motivo comum explorado por autores em algumas obras, o mito de Prometeu. Filho de de Jápeto e Clímene, pertencente à raça dos Titãs, Prometeu gozava da simpatia dos deuses, especialmente de Zeus. Seguindo uma versão, teria sido ele o criador dos primeiros homens, ou seja, o inventor da humanidade. Certa vez, o benfeitor da raça humana tentou ludibriar o deus onisciente na partilha de um boi, oferecendo a ele os ossos do animal envoltos em banha e ocultando a carne nas víceras. Zeus, o que tudo sabe, fingiu-se de logrado, aceitando o quinhão coberto pela banha. Como castigo, o deus dos deuses privou a humanidade do fogo (inteligência), que até então era compartilhado com os sempre-vivos que habitam nas alturas. Não se dando por vencido, Prometeu decidiu roubar o fogo e devolvê-lo aos homens, o que fizera através de certo estratagema. Mais uma vez, o pré-ciente Zeus pré-ciente fingiu-se enganar. Desta vez apenou o insolente com terrível castigo: o de ter o fígado comido, todos os dias, há certa hora, por uma ave (abutre) por todo o sempre. O onipotente infligiu a humanidade com Pandora, a primeira mulher, a qual libertou todos os males encerrados em uma caixa, assolando os homens com fome, saber e sensualidade. Pandora foi um presente de Zeus a Epimeteu, irmão de Prometeu. É deste mito que surge a explicação para o trabalho. Mas Prometeu não roubara o fogo propriamente dito, apenas sementes de fogo, e para não vê-lo apagado o homem teve que escondê-lo no ventre da terra: assim surgiu a agricultura. No Feng-Shiu, o fogo está relacionado à Fênix vermelha e sua direção, o sul; Cinzas do Norte, portanto, remeteria desta forma a um renascimento. Não a um renascimento espiritual, pessoal, ou seja, de uma ou mais personagens, mas em verdade à “esperança” do nascer de uma nova sociedade, de um novo tempo. Matriarca da família Mattoso, possuidora do mesmo dom da palavra que Hermes deu à primeira mulher com o fim de ludibriar e confundir os homens, da sensualidade concedida por Hefesto, nos lábios vermelhos e carnudos, no decote em V, também da beleza e do desejo indomável insuflados pela deusa do amor e da fertilidade, Alícia é a bela e perversa Pandora, a dona do caos, com sua caixinha a disseminar a incendiária discórdia, incitando à desordem. Trajano é Hefesto, deus da metalurgia (trabalho) e “do fogo”, divindade esta que nasceu justamente de uma união extraconjugal entre Zeus e Hera, assim como Mundo. Tal qual o deus coxo, o comerciante também é enfermo, convalescendo de diabetes, doença que o priva de tomar vinho, uma de suas poucas paixões. Hefesto era filho de Dionísio, deus do vinho. Mundo é Prometeu aquele que rouba o fogo de Jano, quando toma para si o direito de escolher o próprio futuro. Roubar o fogo é o mesmo que superar proibições nos diz Bachelard. Assim como Prometeu, o jovem artista é um símbolo da mudança, da audácia e do idealismo. A fundação da arte é um legado deste mesmo herói. Ao fogo atribui-se comumente o sentido de renovação, esta surgirá, pois a partir das cinzas, do ser-mais, do criativo-reativo, e da busca permanente pelo vir a ser, da procura íntima do eu no mundo. O cachorro Fogo é, sem dúvida, personagem emblemática; além de guardião de seu patrão, é um indício onomástico do fim dos Mattoso. “No fim da rua, Fogo reconheceu o escritório do dono, saltou pela janela e ficou empinado diante de uma porta alta. O chofer esperou no carro, nós três subimos”. Aqui, o cão é pronominalmente citado como ser de relevante importância na vida social de seu dono. Fogo vai à frente, no lugar de Jano, quando este não está no veículo, de certo modo também, ocupando o lugar de Mundo. O cão de Hatoum assemelhasse aos de Saramago. Fogo, assim como o cão das lágrimas (O ensaio sobre a cegueira) e Achado (A caverna), é um cão humanizado, paradoxal ao seu dono, pois Trajano é extremamente materialista e desumano (não confundir com cruel ou insensível). O cachorro é, sobretudo, fiel, acompanhando Jano na vida e na morte. Aliás, essa é a função mítica dos cães, segundo o Dicionário de Símbolos de CHEVALIER e GHEERBRANT, a de psicopompo. No Tarô, na carta do Louco, podemos ver um homem e um cachorro. Usando-a como modelo para nossa análise, teríamos o louco como a representação do lado (símbolo da lua) reprimido de Jano, seu animal interior, enquanto que o cão (Fogo:o sol) simbolizaria a domesticação, ou seja, a loucura é liberdade de escolha, opção pelo instinto animal do homem em detrimento da razão, a personagem do descomedido e incivilizado Ranulfo retrata bem esse tipo. O cachorro é, portanto, por ser o animal doméstico mais antigo em contato com a humanidade, “o portador do fogo” aos homens. O incêndio do casarão não só supõem o fim próximo da ditadura, mas também, da mesma forma que em Germinal e em O Ateneu, significa renovação, prenúncio de um novo tempo, visto a associação que o fogo tem com o restabelecimento e purificação da ordem, embora o destino de Mundo e Alicia sejam funestos. De acordo com Heráclito, o fogo era o elemento formador de todas as coisas, pois: tudo na natureza está em constante mutação e ele, o fogo, pode provocar os mais intensos estágios de transformação. O vermelhoEm Cinzas do Norte percebemos uma clara evocação ao vermelho: no vestido que Fogo morde na casa de Ramira, no teto do quarto de Mundo na mansão em Parintins, na roupa do menino filho de Ranulfo; e ainda, no boi (Garantido), na máscara vermelha, no casaco de veludo grená, na camisa de seda com decote em “V” e nos lábios vermelhos de Alicia, entre outras citações. O vermelho está intima e diretamente associado ao fogo e ambos ao movimento, à mudança de estado. É um dos limites visíveis do espectro solar, a primeira cor que podemos distinguir. Podemos estabelecer uma relação do vermelho com a passagem de um estado de consciência a outro, do consciente ao inconsciente, ou vice-versa. No Cristianismo é o sangue do Divino, e também o exército dos escolhidos que luta e vence o Dragão vermelho, segundo o livro de Apocalipse, capítulo 12, onde João narra que uma mulher "vestida de sol" dá a luz uma criança, um varão, a qual vem ao mundo com o propósito de “apascentar todas as nações". O verme (vermelho, do latim vermiculus) tenta devorar o pequeno que libertará a humanidade, mas acaba sendo vencido e lançado na terra, no mar de fogo. Assim como o terceiro cavaleiro do Apocalipse, Mundo vem tirar a paz, o sossego dos militares-dragões e purificar a sociedade. O vermelho é dicotômico, guerra/paz, vida/morte, masculino/feminino, dual. Símbolo da sabedoria, do conhecimento, da ciência. A veste monacal, a túnica dos czares, as hemácias, Ogum, Iansã e Xangô. A ave Fênix, pássaro lendário de muitos povos, após seu ciclo de vida, deitava-se em seu ninho de fogo, para ali morrer cremada, e depois de renascer voava do norte para o sul, recomeçando um novo ciclo. O vermelho no sangue das camisas, símbolo da luta dos estudantes, na Rio Branco dos Cem Mil, vermelho da esquerda e do socialismo reacionário, do Campo de Cruzes em chamas; vermelho dos lábios de Alicia, que incita, mas que também, como um az de ouro nas noites de jogatina no casarão, adverte: - Não abuse da sorte. Anos sessenta, década do vermelho de Mao Tsetung, de Stramberry Fields (Forever?) e da Primavera de Praga, de Hilhelm e Guevara. Primeiro transplante coronário; De Vermelho Vive O Coração, então: Faça amor, não faça guerra, a política do amor livre. Anos de Glauber Rocha e seu Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. E de novo o vermelho que incita: Na China dos camponeses, na Cuba de Fidel, na Argélia pela independência. Mas outra vez também o vermelho que alerta: AI-5 contra a subversão. O Inferno Vermelho na vida dos militares, vermelho das bandeiras, da Coca-Cola, da ferida na alma de Mundo. Vila AmazôniaA vila de Jano, da qual Alicia não gosta de lembrar, realmente existe e localiza-se nas proximidades do município de Parintins, tal qual no romance. Talvez essa verossimilhança se justifique como uma homenagem do autor aos 38 imigrantes japoneses que a fundaram em 20 de junho de 1931. Em Cinzas do Norte, a Vila Amazônia, assim como ocorreu na realidade, é uma colônia de plantation, onde é cultivada a juta, planta cuja fibra foi largamente utilizada na indústria têxtil e introduzida aqui na região pelos nipônicos. O produto gerou divisas e emprego na década de 1930, dando certo fôlego à economia do Amazonas, após a catástrofe do látex. Para o projeto de colonização firmado pelo Brasil com o governo japonês, foi concedido um milhão de hectares de terras aos imigrantes daquele país. Seguindo a verossimilhança, a propriedade de Jano entra em decadência e acaba sendo abandonada depois de sua morte. Lá trabalhavam alguns japoneses e índios, e também é onde mora um dos supostos muitos filhos de Ranulfo, menino o qual Jano faz questão de exibir com orgulho como uma prova viva da irresponsabilidade de seu desafeto, mas que na verdade foi apenas mais um dos muitos artifícios inventados por Alícia para enganá-lo. Historicamente, com o começo da Segunda Guerra, os japoneses que moravam e trabalhavam na vila começaram a receber ameaças, alguns chegaram a ser presos e outros foram expulsos do país. A propriedade foi tomada como espólio de guerra e depois leiloada, passando às mãos da empresa de J. G. de Araújo, um dos maiores empresário do estado e amigo dos militares, pondo fim ao enorme crescimento alcançado pelo lugarejo. A vila chegou a ter escolas, armazéns e até um hospital. Hoje é uma pequena localidade, como muitas outras na Amazônia, perdida no meio da selva. Nela ainda vivem alguns descendentes dos primeiros habitantes. Análise estruturalO romance é narrado em primeira pessoa, embora as cartas, também em primeira pessoa, de Ranulfo e Arana, sejam relevantes, consideramos o romance do ponto de vista de Olavo, classificando-o como narrador testemunha. a) o tempo é anacrônico (as cartas funcionam como “flashbacks”); b) espaço dimensional; c) há verossimilhança; d) narrador testemunha, e) romance histórico. Onomástica
Algumas consideraçõesMundo é uma personagem inquietante, possuidora de uma revolta cujo motivo apesar de claro não se sabe de onde vem nem quando começou. Nascido numa família abastada, criado num palacete, estudando em um dos melhores colégios da cidade, simplesmente se revolta contra o Estado e contra o pai. Que motivos teria um menino em sua condição social para renegar sua fortuna, rebelar-se contra o status quo? Outro enigma com o qual nos deparamos é a vida de Alícia, da qual não sabemos nem a origem, nem os limites de sua personalidade manipuladora. Podemos realmente acreditar na carta de Arana a Mundo? “Essa é a verdade”, ela afirma, a respeito do teor da tal carta. Passamos todo o livro convencidos de que Ranulfo é o pai de Mundo, aí surge a carta e... Começa a nos devorar uma dúvida infinita, protéica. Alícia teria escrito a carta para apaziguar o sofrimento de Mundo, como um meio de confortá-lo em saber que não era filho de Trajano, mas de Arana, a quem sempre o menino admirou? Ou para vingar-se de todos, inclusive de Ranulfo, teria ela forjado-a, pois não podia mudar a natureza fingida que sempre procurou dissimular, ainda que na ruína, e Trajano seria o verdadeiro pai? Olavo é um narrador testemunha, o que é diferente de um narrador onisciente. Não podemos confiar absolutamente no que ele nos conta, pois se trata de uma visão subjetiva dos fatos. Verdade mesmo é que a dúvida persistirá para sempre, assim como em Dois Irmãos. |