Os Sinos da Agonia
Os sinos da agonia é um romance do escritor brasileiro Autran Dourado, publicado em 1974. Apesar de história se passar na Vila Rica do final do século XVIII, não se trata de um romance histórico. A obra ganhou o Prêmio Paula Britto, do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. O romance é uma recriação do mito de Fedra e Hipólito, e utiliza como referências as tragédias Hipólito, de Eurípides, e Fedra, de Racine. A estrutura incorpora elementos da tragédia grega, sobretudo a ausência do narrador e a presença do coro, além das técnicas usuais do autor, como a narrativa em blocos, o fluxo de consciência, a repetição, o monólogo interior, flashbacks e flashforwards. A obra suscita reflexões a respeito da verdade, do destino, do tempo, do ser, da linguagem, da memória e do ato de narrar. Pode-se, portanto, classificá-la também como um meta-romance. Outros livros utilizados como referência foram o Triunfo Eucarístico - Exemplar da Cristandade Lusitana, de Simão Ferreira Machado (1734), o Áureo Trono Episcopal, de Francisco Ribeiro da Silva (1749) e o Diccionario da Lingua Portugueza, de Antonio Moraes e Silva (1813).[1][2][3] A personagem Malvina Dias Bueno personifica Fedra, enquanto Hipólito é personificado por Januário e Gaspar, rivais no amor de Malvina. Esses rivais são, em grande medida, o oposto um do outro, e por isso se completam. Outros personagens têm paralelo no mito grego: João Diogo Galvão personifica Teseu, sua esposa Ana Jacinta, personifica Antíope. Donguinho, irmão de Malvina, personifica o minotauro. Mesmo os escravos Isidoro e Inácia têm seus correspondentes na tragédia de Racine: Teramene e Enone, respectivamente. Algumas relações entre os personagens do romance não são idênticas, no entanto, às dos personagens do mito; as associações são, portanto, apenas aproximadas. [3][4] O autor indica, através de referências ao medo da Derrama e às novas tendências estéticas do Arcadismo, além da ausência a referências à Inconfidência Mineira, que a história se passa mais provavelmente entre os anos de 1787 e 1789.[3] Estilo e técnicas narrativasA retirada do narrador se efetiva, em primeiro lugar, por meio da narrativa em blocos: o livro está dividido em quatro partes, chamadas jornadas. A primeira jornada apresenta os eventos sob o ponto de vista de Januário; a segunda apresenta os eventos sob o ponto de vista de Malvina; a terceira, de Gaspar; essas três jornadas iniciais situam o leitor na história e e desvelam o caráter desses personagens principais, bem, como dos personagens secundários; na quarta jornada, retomam-se em rápida sequência os pontos de vista de Malvina, de Gaspar e, finalmente, de Januário, atingindo-se a conclusão da história.[3] O autor utiliza a técnica da falsa terceira pessoa: apesar de a narração se dar sempre na terceira pessoa; o narrador não é onisciente. O narrador nem mesmo chega a organizar os eventos numa ordem inteligível; os fatos nunca são apresentados de maneira totalmente objetiva, mas unicamente a partir da visão pessoal do personagem, de sua consciência, dos seus sentimentos; os personagens falam e o leitor deve por si só unir os fatos e reconstruir a trama. Em certo ponto do livro, insere-se um coro similar ao que aparece nas tragédias clássicas, aprofundando ainda mais o afastamento do narrador. Esse coro, formado pelo povo da cidade que comenta os acontecimentos, evoca o adivinho cego Tirésias, o corifeu, e lhe pede que esclareça os mistérios da história.[3][5] A presença de forças invencíveis a que os personagens não conseguem resistir não é uma característica apenas da tragédia clássica, mas também do Barroco, que está sempre presente na obra de Autran Dourado.
A obra também é notável pela profunda análise psicológica, uma marca registrada do autor, aplicada não só aos personagens principais, mas também a alguns secundários, como os escravos Isidoro e Inácia. [3] Está presente também uma característica comum a outras obras de Autran Dourado: o contraste de personalidade entre os personagens principais, neste caso Januário e Gaspar. [2] Por tratar-se de romance de época, Autran Dourado, sempre preocupado com a exatidão das palavras empregadas, foi obrigado a pesquisar o vocabulário e as expressões coloquiais empregados, bem como a indumentária, o mobiliário, a política, a religião e a atividade econômica da época. Tudo isso justifica o fato de Os sinos da agonia ser o romance que o autor levou mais tempo para concluir: três anos.
EnredoA capitania de Minas Gerais, no final do século XVIII, já se encontra em decadência econômica. O ouro de aluvião escasseia e os impostos são muito pesados. O governo ameaça continuamente com a Derrama: a cobrança dos valores em atraso. Muitos aventureiros fracassam, poucos têm sucesso. Um desses últimos é João Diogo Galvão, que possui também vastas extensões de terra no sertão do couro (o Vale do Jequitinhonha). Após ficar viúvo, João Diogo Galvão vai a Taubaté, berço dos bandeirantes, procurar uma nova esposa entre a aristocracia local. O patriarca da decadente família Dias Bueno, arruinada após vários insucessos na busca do ouro nas Minas Gerais, concorda em dar a mão de sua filha, após verificar que a situação econômica de João Diogo é muito sólida, ao contrário da da maioria dos pretendentes. Inicialmente, é a mais velha, Mariana, que vai casar-se, mas Malvina, a mais jovem, seduz o velho, por cobiçar sua grande fortuna. João Diogo decide, então, que desposará Malvina; Mariana é obrigada a retirar-se para um convento. O filho de João Diogo, Gaspar, pessoa sensível e reservada, havia decidido não se casar, após a morte da mãe e da irmã. Ele não vê com bons olhos o casamento do pai com uma jovem de pouco mais de vinte anos de idade. Ao saber das negociações, retira-se para o sertão, percorrendo sem descanso as várias propriedades do pai. Quando retorna e conhece Malvina, os dois se apaixonam. Gaspar não revela seus sentimentos a ninguém; Malvina procura a princípio seduzi-lo, e acredita não ter sucesso. Algum tempo depois, frustrada, entrega-se a Januário, filho bastardo de um outro fazendeiro local. Januário, filho de branco com índia, é em muitos aspectos o oposto de Gaspar, e é esse contraste que a princípio atrai Malvina. Com o tempo, porém, descobre que não está satisfeita. Passa a tramar o assassinato do marido, e convence Januário a executar o crime. Introduz o amante uma noite no quarto de João Diogo, armando-o com um punhal na última hora e sem avisá-lo de que o velho dormia com uma pistola ao lado. João Diogo, já desconfiado há algum tempo do comportamento da esposa, está apenas fingindo dormir. Ele e Januário lutam, e este assassina o outro a facadas. Malvina facilita a fuga de Januário, mas a criada estava instruída para delatá-lo à polícia logo em seguida. Malvina, que havia presenteado uma caixa de jóias a Januário para que este preparasse um refúgio onde iria encontrá-lo em alguns dias, declara ao Capitão-General que ela havia sido roubada pelo assassino do marido. O Capitão-General aproveita a situação para acusar Januário não apenas de assassinato e roubo, mas também de conspiração. Acredita que uma execução aterrorizará os habitantes da cidade e neutralizará as reclamações contra a Derrama próxima. Após algum tempo buscando o acusado e não o encontrando, decide executá-lo em efígie, ou seja: sua morte seria decretada, seus bens confiscados, seu enforcamento seria encenado em praça pública com auxílio de um boneco de palha, e a partir daí ele passaria a não mais existir oficialmente; qualquer pessoa poderia, por exemplo, matá-lo sem que isso fosse considerado crime. Com o caminho livre, Malvina se declara a Gaspar que, apesar de também apaixonado, a repudia, mudando-se para outra casa. Malvina, depois de enviar várias cartas e não obter resposta, decide suicidar-se, depois de escrever uma carta ao Capitão-General acusando o enteado de cumplicidade no assassinato do próprio pai. Enquanto isso, Januário, refugiado nas montanhas, chega à conclusão que havia sido usado pela amante. Analisando sua situação, recusa-se a continuar fugindo e volta à cidade para ser morto pelas forças policiais.[3] PersonagensMalvina Dias Bueno - Jovem paulista de família aristocrática empobrecida, filha de Dom João Quebedo e Dona Vicentina Dias Bueno. Casa-se com o velho viúvo rico João Diogo Galvão e apaixona-se pelo filho deste, Gaspar, que lhe corresponde o amor, sem revelá-lo. Ambiciosa, engenhosa e ousada, vence a irmã Mariana na disputa pelo marido rico; trama o assassinato do marido pelas mãos do amante, Januário; delata o criminoso à polícia, acusando-o de roubo e assassinato; provoca a ruína do amado Gaspar, acusando-o injustamente de cúmplice do crime. É também mulher sensível e refinada, tendo despertado os sentimentos de Gaspar, o que nenhuma outra mulher havia conseguido. A princípio, não está imune ao sentimento de culpa por amar ilicitamente o enteado, mas ao longo do tempo habitua-se à situação, não se arrependendo em nenhum momento do assassinato de João Diogo. João Diogo Galvão - Fazendeiro possuidor de grandes cabedais, obtém por isso a mãe de Malvina após a morte da primeira esposa, Ana Jacinta. Homem "das antigas", ama o filho, Gaspar, embora não o compreenda. Desconfia da traição da esposa, mas não a tempo de escapar de ser assassinado pelo amante desta, Januário. Gaspar - Filho de João Diogo, volta de Portugal, onde estudava, e afasta-se das mulheres após a morte da mãe e da irmã. Desaprova desde o início o novo casamento do pai. Ao conhecer Malvina, sofre profunda impressão e apaixona-se após alguns dias de convívio, embora não o confesse a ninguém e mantenha com ela um relacionamento estritamente correspondente ao seu parentesco. É assediado, no entanto, por pesadelos onde mata o pai; assim, quando este é assassinado, sofre enormemente, e não pode tomar Malvina como esposa. Muda-se de casa e ignora as cartas da viúva. Quando é avisado de que ela o havia acusado ao Capitão-General de cumplicidade no crime, aceita serenamente o seu destino. Januário - Filho bastardo do fazendeiro Tomás Matias Cardoso com uma índia, é bem tratado pelo pai, embora não oficialmente reconhecido. Apaixona-se por Malvina ao vê-la na rua e serve como sua mão no assassínio de João Diogo. Ao final, percebe que havia sido traído, pois a amada não foge ao seu encontro como prometera, e decide entregar-se à polícia para ser morto.[3] Isidoro - Escravo mina, presenteado a Januário pelo pai, acompanha o dono inclusive durante a fuga deste. Enfrenta a tentação de matar Januário ou entregá-lo à polícia, em troca de sua liberdade. Quando o patrão resolve entregar-se, declara que nunca mais viverá com os brancos, que considera traiçoeiros e incapazes de compreender os negros. Inácia - Escrava que acompanha Malvina desde a infância desta, ajuda-a a encontrar-se secretamente com Januário, a introduzi-lo em casa para matar João Diogo e, depois, a acusá-lo de roubo e assassinato. O Capitão-General - O autor apresenta o capitão geral como uma pessoa autoritária e inescrupulosa, a ponto de inventar uma conspiração para poder condenar Januário à morte, com o único objetivo de amedrontar a população. Na época, o capitão geral da capitania era também o governador. Seu nome não é revelado, mas os governadores da capitania naqueles anos foram Luís da Cunha Pacheco e Meneses, conde de Lumiares (até 1788), e Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, Visconde de Barbacena. O primeiro foi apontado como extremamente corrupto por Tomás António Gonzaga em suas Cartas Chilenas.[3][5] SimbolismoA obra mescla ideias características do Romantismo, como a da força avassaladora das paixões e a da visão da morte como redenção e alívio dos sofrimentos, com outras típicas da literatura clássica, como a da inexorabilidade do destino e a do desvelamento progressivo da verdade (aleteia) através do sofrimento. Essa mistura de técnicas e gêneros caracteriza a obra como modernista. Os sinos tocam, em alguns momentos da narrativa, o toque de agonia: sete badaladas longas e bastante espaçadas. Esse toque indica que um dos fiéis está agonizante; a sequência se repete até que ele entregue a alma. Na crença popular, uma agonia lenta indica que a alma está cheia de pecados e por isso reluta em abandonar o corpo, pois iria para o Inferno. Por isso, entre cada badalada, deve-se rezar para que esses pecados sejam perdoados.[3][5] HamartíaGaspar é o personagem trágico do romance, aquele que comete a chamada falha aristotélica (hamartía), a mesma de Hipólito no mito: ao negar-se a prestar o devido tributo a Afrodite, a deusa do amor carnal, expõe-se à ira desta, que o castiga. É interessante lembrar que a mesma deusa havia imposto anteriormente um castigo à descendência de Hélio: o de que todos eles teriam tendências amorosas e sexuais exacerbadas. Os descendentes de Hélio, portanto, teriam um caráter oposto ao de Hipólito, que cultuava a deusa da castidade, Ártemis. Filha de Hélio era, por exemplo, Pasífae, e assim também seus filhos Fedra e o minotauro receberam o mesmo castigo. Os personagens Vicentina, Malvina e Donguinho exibem exatamente essa característica em Os sinos da agonia. Assim, Malvina não seria um personagem trágico, porque sua "falha" não pode ser considerada como de sua responsabilidade.[3] Hirata, no entanto, argumenta que a verdadeira hamartía no mito não é cometida por Hipólito, pois o erro não foi cometido por desconhecimento, característica essencial segundo Aristóteles.
Segundo a autora, pode-se considerar que Hipólito cometeu hamartía apenas se interpretarmos o termo de acordo com a visão dos teóricos românticos:
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