Tomás GaloTomás Galo (em latim: Thomas Gallus) de Vercelli (ca.1200 – 5 de dezembro de 1246), mais conhecido durante sua vida como Tomás de Vercelli (Thomas Vercellensis), Tomás de Paris, Tomás de São Vitor ou Abade de Vercelli,[1][2] foi um teólogo francês, cônego regular agostiniano membro da Escola de São Vítor e abade. Ele é conhecido por seus comentários inovadores sobre Pseudo-Dionísio e suas ideias sobre teologia afetiva, sendo o principal arquiteto do chamado "dionisianismo afetivo", uma corrente de interpretação inaugurada anteriormente por Hugo de São Vitor. Nisso, influenciado pelas tradições agostiniana, cisterciense e vitorina, Tomás enfatizava o amor como uma potência distinta da alma que mais leva à aproximação, conhecimento e união da alma com Deus.[3][4] Seus elaborados esquemas místicos influenciaram, dentre outros, Boaventura e A Nuvem do Não Saber. Sob esse olhar dionisiano, seus comentários sobre o Cântico dos Cânticos não possuem igual na literatura teológica subsequente.[4] VidaNascido em algum momento do final do século XII, seu país de origem é contestado. A opinião geral é de que ele era francês, daí ser chamado "Gallus", porém em vida ele não era conhecido por esse cognome, que só começou a ser usado por acadêmicos do século XVII. Já outros estudiosos consideram que "Gallus" é um nome de família típico do norte da Itália. Outros ainda consideram evidências e uma tradição de que ele seria proveniente da Inglaterra, e que Gallus é uma designação latina usada para se referir ao País de Gales. De qualquer modo, ele partiu da Abadia de São Vítor em Paris, quando foi levado a Vercelli, no norte da Itália, pelo cardeal Guala Bicchieri, talvez junto a outros três companheiros. Lá, fundaria um novo mosteiro e hospital, a Abadia de Santo André, conforme desejava Bicchieri estabelecer em sua cidade natal. Em 1224/25, Tomás foi nomeado abade.[1][3] Como abade, dedicou-se não apenas às tarefas administrativas diárias do mosteiro, mas também a compor vários comentários e exposições da Bíblia e dos escritos do Pseudo-Dionísio. Ele desfrutou de um relacionamento próximo com a nascente ordem franciscana; de fato, os franciscanos transferiram seu studium generale de Pádua para Vercelli por volta de 1228. Ele conheceu pessoalmente Santo Antônio de Pádua. Tomás também conhecia Robert Grosseteste, a quem ele pode ter encontrado em 1238, quando visitou a Inglaterra para garantir um benefício associado à igreja de St. Andrew's em Chesterton. Gallus e Grosseteste parecem ter trocado alguns escritos por intermédio do associado de Grosseteste, o franciscano Adam Marsh. Quando estourou a guerra entre os guelfos de Vercelli e os gibelinos da cidade vizinha de Ivrea, Gallus foi obrigado a fugir de Vercelli em 1243 e se refugiar em Ivrea, devido às suas simpatias imperiais pró-gibelinas, por exemplo defendendo um familiar de Bicchieri. Nessa época, muitas acusações graves foram feitas contra ele pelos partidários papais, como de simonia e roubo e vendas de relíquias. Após três advertências do Papa, foi excomungado. Alguns registros sugerem que ele conseguiu retornar a Vercelli antes de sua morte em 5 de dezembro de 1246.[1][3] Um monumento funerário a Gallus pode ser visto hoje na Igreja de Sant'Andrea in Vercelli. PensamentoGeneralidadesTomás Galo escreveu extensivamente entre cerca de 1218 e sua morte. Frequentemente chamado de "o último dos grandes vitorinos", herdando de mestres como Hugo e Ricardo de São Vítor muitos pontos de partida de seu pensamento.[2] A interpretação dionisiana de Tomás Galo foi apresentada nos últimos anos como uma das duas tradições de interpretação da teologia mística de Pseudo-Dionísio que surgiram no século XIII.[5] O teólogo Bernard McGinn fornece esse contexto da divisão:[6]
Com grande influência na escrita vernacular mística posterior,[5] Tomás Galo tornou-se a fonte principal para muitos exponentes do dionisianismo afetivo,[4] o qual se tornou a corrente dominante na Idade Média Tardia, embora existissem nesse período diversos outros teóricos e tendências místicas que enfatizavam o caminho intelectual.[7] Especificamente, a interpretação afetiva se refere ao fato de que, no debate contemporâneo sobre a relação entre amor e conhecimento na consciência mística, Tomás sustentou que a afetividade tende a excluir (em vez de simplesmente subsumir) o conhecimento humano nos estágios mais elevados do itinerário místico,[8] talvez tendo sido o primeiro autor a afirmar isso.[6] A interpretação afetiva de Tomás fez uma revolução em comparação a todos os outros comentaristas da obra dionisiana, seja nos séculos XII e XIII ou desde a tradução de Erígena, em que predominava o dionisianismo intelectual.[1] Isso foi combatido por partidários que defendem uma presença do intelecto para o conhecimento maior de Deus.[9] Declan Anthony Lawell considera que inclusive Alberto, o Magno, teria chegado a criticar Tomás.[1] Outro dominicano que seria expoente do "dionisianismo intelectivo" foi Tomás de Aquino.[9][10] Segundo McGinn, Tomás "combinou o apofatismo dionisiano com uma leitura afetiva do Cântico dos Cânticos para formar um potente nova teoria mística que teve uma grande influência no final da Idade Média".[4] Nisso, a inovação própria de Tomás é de que a sua união do eros cósmico da metafísica neoplatônica de Pseudo-Dionísio com o amor interpessoal e esponsalício do Cântico dos Cânticos ganha uma dimensão cristológica não presente na obra dionisiana.[11][4] Outro aspecto que mais distingue o pensamento de Tomás é sua afirmação de que não somente a mente humana entra em êxtase na união da alma com Deus, mas que também ocorre um êxtase divino recíproco.[4] Elaboração teóricaHavia uma contradição entre duas tradições da Idade Média sobre a relação entre amor e conhecimento na relação do homem com Deus: a agostiniana afirmava que na visio Dei beatífica, Deus era plenamente conhecido e amado; enquanto a dionisiana enfatizava a total transcendência e incognoscibilidade de Deus. Hugo de São Vitor inaugurou a interpretação afetiva de Pseudo-Dionísio, como uma das várias tentativas medievais de resolver esse conflito, aproximando ambas correntes. Ele afirmava: "o amor ultrapassa o conhecimento e é maior do que a inteligência". Assim seguiu também Tomás Galo; na paráfrase que ele realizou da Teologia Mística, a Extractio (1238), Tomás escreveu que Moisés "uniu-se ao Deus intelectualmente desconhecido por meio de uma união de amor (dilectionis), que é eficaz do verdadeiro conhecimento (verae cognitionis), um conhecimento muito melhor do que o conhecimento intelectual".[4] Escrevendo em 1224 as Glosas sobre a Hierarquia Angélica, irá estreiar uma série de comentários sobre as obras dionisianas. Para Tomás, os aspectos práticos da vida espiritual e união com Deus eram apresentados no Cântico dos Cânticos, enquanto a teoria dessa vida mística era explicada na Teologia Mística de Pseudo-Dionísio.[1] Segundo Pseudo-Dionísio, há uma terceira via para além da positiva (teologia catafática) ou da negativa (teologia apofática) para se conhecer Deus: aquela que considera os atributos divinos como estando além de quaisquer conceitos humanos, seja positivos ou negativos, por exemplo como uma superbondade ou supersabedoria que não é possível de ser compreendida. Deus é uma "negação das negações". Tomás ofereceu um esquema interpretativo novo para solucionar esses problemas: ele afirmou que a única forma de se unir verdadeiramente a Deus era através do movimento do amor na alma, um amor que vai além do intelecto e promove o retorno desta. Nisso, deu também outro sentido ao conceito neoplatônico de epistrophê (conversão). A esse poder da mente humana ele chama variadamente de "afeto", "desejo", "amor", "união", "faísca de sindérese" e "Serafim da mente".[1] Os graus angélicos da Hierarquia Celeste de Pseudo-Dionísio são reinterpretados de forma psicológica como existindo também na alma, o que foi chamado de "angelização" da mente humana.[3][4] Assim, afirma que o "Serafim da mente", ou seja, o amor, supera o "Querubim da mente", que seria o intelecto. Tomás compara o efeito do amor a um pote de água fervente, pois a alma como se expande de seus limites, natureza e intelecto, em "ebulição" (ebullitio), ao se unir a Deus.[1]
Tomás já foi visto por alguns intérpretes como anti-intelectual por dar prioridade ao amor e, no último degrau, o amor excluir o intelecto. Boyd Taylor Coolman critica comentaristas que enxergam uma narrativa linear e unidirecional das ascensão da alma em direção a Deus, e indica como no corpo da obra de Tomás há um reforço mútuo entre amor e intelecto, em que há não apenas subida do conhecimento ao amor, mas descida do amor ao conhecimento.[4] Para Tomás, há duas direções do movimento de conhecimento intelectual a Deus: um ascendente, aquele da filosofia, em que a alma se eleva intelectivamente, e um descendente, em que a memória da união experiencial do amor de Deus (ordem do Serafim) goteja e percola sobre o intelecto. Essa última ocorre na ordem do intelecto (ordem do Querubim), quando este recorda o afeto superior na hierarquia e recebe força, alegria e fervor, sendo sustentado pelo que ele chama de "afeto colateral" (collateralis affectio), ou seja, o afeto que anda "lado a lado" com o intelecto. Ainda assim, porém, em outras passagens ele afirma que o "conhecimento afetivo" é maior do que o "conhecimento intelectual".[3] Na ascensão, são mobilizadas as partes angelizadas das mais baixas às mais elevadas hierarquicamente na alma. Nela, o conhecimento de Deus ocorre de duas formas: o conhecimento intelectual (scientia) e o superintelectual (cognitio), que ele equivale à "sabedoria dos cristãos", ou como um conhecimento amoroso e unitivo. Conforme a alma ascende às potências médias, ela abre "cavidades" ou "receptáculos" para a recepção do conhecimento supraintelectual de Deus, que vem de cima; a alma ainda está em si ("ênstase"), mas se prepara ao êxtase, aproximando o amor e o intelecto. Na tríade superior da hierarquia, o amor e o intelecto agora unidos se expandem da alma em êxtase, e, na ordem do Trono, torna-se capaz de receber o "Esposo" divino: "Existem tantos tronos quanto cavidades interiores ou capacidades da mente para [receber] os raios supersubstanciais." Na ordem do Querubim, ambos afeto e intelecto estão "puxados para o alto" (attractus) e caminham de mãos dadas (coambulant), até o ponto em que o intelecto falha e somente o afeto procede: na ordem do Serafim, quando "abraça o Esposo", "corta-se o conhecimento" e resta apenas a centelha da alma, no ápice da afeição; ela "conhece Deus acima de toda intelecção e cognição existentes".[4] Na descida, há também o movimento do Amor de Deus para recolher a alma a Si: "O amor de Deus se estende a outras mentes e as atrai de volta para Si". Os influxos de Deus são comparados a seios ou chuva de luz nutridora que jorra, e nisso a parte seráfica, apesar de exclusivamente afetiva, fecunda também o intelecto nas ordens inferiores, como uma fonte de abundância afetiva e intelectual. Na linguagem do Cântico dos Cânticos, ele afirma que os influxos afetivos que descem são como "mel" e a cognição intelectual sóbria é como "leite".[4] As valências ascendente e descendente geram na alma uma circulação perpétua, em reflexo da circulação divina. Amor e conhecimento andam juntos e um gera o outro, como quando ele afirma que "a contemplação abraçadora (amplexativa) e circular (...) produz cognição e amor nas ordens inferiores, ou seja, circula em volta dele de nova maneira", e torna-se, enfim, um movimento espiral em torno de Deus, quando a memória da união ao Esposo sempre motiva a alma a subir de volta cada vez mais: "através de constantes ascensões de contemplação (...) novas coisas continuamente se sucedem até o infinito (in infinitum)".[4] Para Tomás, Deus era a plenitude da qual todos os outros seres participam de forma parcial. Como plenitude do ser, Ele transborda sobre o mundo:[1]
Os seres na criação são preenchidos de acordo com sua capacidade. Todos participam da plenitude divina e são de algum modo plenos, porém não em igual grau: alguns paticipam mais da plenitude do que outros, em uma hierarquia. Tomás utiliza da imagem de Deus como uma fonte ou rio inexaurível, que preenche canais e poços, variando de acordo com a distância. Segundo o esquema hierárquico dionisiano, há um influxo (influitio) que parte de Deus através das nove ordens angélicas até a alma humana, a qual reflui de forma ascendente (refluitio) pelo mesmo caminho. Esse processo de absorção ele chama de "ordem do refluxo" (ordo refluitionis).[3] Deus é também descrito por ele como "totalmente não inteligível, porém totalmente desejável" (totus non intelligibilis, totus desiderabilis). Apesar de Deus ser inefável e não poder "ser visto" (o que ele considera uma analogia do intelecto), Tomás contorna com outros termos: Deus pode ser provado como se pelo gosto, olfato ou tato, analogias sensórias do toque e apreciação do amor, que não podem ser comunicados, mas apenas sentidos em experiência.[3][4] Pois, segundo ele, "o amor penetra tocando, cheirando e degustando", enquanto o intelecto possui uma certa característica de visão, "oculosidade" (oculositas).[4] No entanto, embora Deus seja experienciável de alguma forma para Tomás, ele não nega que há uma essência Dele totalmente desconhecida, até mesmo para o amor. Mesmo existindo a duplex cognitio (cognição dupla, ou seja, pelo amor e pelo intelecto), Tomás afirma: "No entanto, a infinitude da natureza divina, sublime, está inefavelmente localizada acima desses dois tipos de conhecimento".[3] Na experiência máxima do amor, a alma em êxtase se encontra no que chama de apex affectionis, o mais alto ápice do afeto.[3] Nesse estado, a contemplação ocorre para além da mente (supra mentem). A afirmação da prioridade do amor sobre o intelecto para o acesso a Deus foi fonte de muitos debates sobre se Tomás teria extrapolado para muito além do que Pseudo-Dionísio fornece em seus textos, e diversos críticos viram o dionisianismo afetivo como uma interpretação errônea. Ty Monroe considera, porém, que Tomás está coerente com a epistemologia e metafísica de Pseudo-Dionísio, pois este afirma que Deus está além do Ser (i.e., é supraessencial) e que o intelecto era limitado para acessá-lo, devido ao caráter mediato deste. Uma passagem de Pseudo-Dionísio em Dos Nomes Divinos, frequentemente citada por Tomás, evidencia isso:[9]
Assim também Pseudo-Dionísio fazia conexões entre a henose e o êxtase por meio de eros, como em Dos Nomes Divinos 4.13:[9]
InfluênciaTomás de Galo teve ampla influência na Europa. Em 1228, a Universidade de Pádua foi transferida como um studium em Vercelli, e Tomás pode ter exercido grande influência sobre a nascente ordem franciscana. Tomás inclusive afirmou que conheceu pessoalmente Antônio de Pádua. É bem conhecida a influência de Tomás sobre Boaventura. Ele também foi comentado por Francisco de Meyronnes e citado por Alexandre de Hales, Ricardo Rufo da Cornuália, Hendrik Herp, Rodolfo de Biberach, Davi de Augsburgo e muitos outros escritores do sul da Alemanha e Áustria.[1][12] Sua obra extendeu-se não apenas a franciscanos, mas até a outros, como o cartusiano Hugo de Balma.[12] As referências ao pensamento de Tomás que Vicente de Aggsbach fez influenciaram gerações, ao passarem a textos como A Imitação de Cristo, e foram também lidas por Nicolau de Cusa. O vocabulário místico cunhado por Tomás foi muito utilizado na teologia subsequente, como por Mestre Eckhart, bem como seu criticismo bíblico. Boaventura e Grosseteste são figuras imediatas que utilizaram dos conceitos de "angelização" e hierarquização da alma em sua jornada a Deus que Tomás formulou.[1] A Nuvem do Não Saber (século XIV) tornou-se a obra mais conhecida da interpretação dionisiana afetiva, e seu autor anônimo faz referência a Tomás: "Acompanhei em grande parte as interpretações do abade de St. Victor, um notável e erudito comentarista deste mesmo livro [A Teologia Mística]".[4] Posteriormente, o dionisianismo afetivo seria transmitido aos místicos espanhóis, como em Teresa de Ávila, mediado por Hendrik Herp[13] e principalmente por Jean Gerson.[14] Obras sobre Pseudo-Dionísio
Comentários bíblicosOs comentários de Tomás sobre as Escrituras incluem:
Referências
Edições modernas
Leitura adicional
Ligações externas
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